Em 1977, Roberto Schwarz publicou Ao Vencedor as Batatas, onde
destaca que “ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o
Brasil põe e repõe idéias europeias, sempre em sentido impróprio”.
Tal reflexão segue a mesma direção de Sergio Buarque de Holanda que,
em 1956, em Raízes do Brasil, tão bem definiu o sentido das “idéias
fora de lugar”. A tradição do pensamento brasileiro de transposição de idéias sem
a necessária adaptação ao modo de vida local, também esteve
presente na cultura arquitetônica e urbanística do país, mais
particularmente na cidade de São Paulo. No final do século XIX e primeiras décadas do século XX, ocorreu
uma inflexão no trato das questões urbanas, principalmente no Rio de
Janeiro e, mais tardiamente, em São Paulo, caracterizada por uma
abertura para a assimilação de teorias e práticas estrangeiras que
nos chegavam por meio de publicações e outras formas de intercâmbio
com o exterior. Na cidade de São Paulo, o Plano de Avenidas, coordenado pelo
engenheiro Prestes Maia, foi o ponto de partida do pensamento
urbanístico paulistano. O primeiro plano elaborado para estruturar o
espaço urbano da cidade trazia a tradição da transferência de idéias
internacionais, acompanhada de elementos de fora do lugar que exigiam a
composição de um modelo local, o que naquele momento não foi feito. Na continuidade da história urbana da cidade, a transferência de
idéias continuou uma presença constante nos planos e projetos
elaborados para São Paulo. No período pós Segunda Guerra mundial, as
cidades europeias viviam um momento de prevalência dos ideais do
movimento moderno, impulsionando a reconstrução das áreas destruídas
e a construção de centenas de conjuntos habitacionais com elementos
industrializados para abrigar a população desalojada. No Brasil, ao mesmo tempo em que as idéias modernistas eram adotadas
na produção da arquitetura local, também aportavam as idéias do
Movimento Economie et Humanisme, que por longo período influenciou na
elaboração dos planos para as cidades brasileiras e, especialmente em
São Paulo, foi decisivo na formação de toda uma geração de
urbanistas. Padre Lebret, seu expoente máximo, organizou na cidade de São
Paulo, a Sociedade para Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos
Complexos Sociais (SAGMACS), responsável pela preparação do estudo
Estrutura Urbana da Aglomeração Paulistana (1958). Novamente, a transposição de idéias vinda de lugares distantes se impôs. O estudo comparava as periferias de São Paulo, que cresciam de forma
desarticulada e irregular, com as cidades européias destruídas pela
guerra, sem compreender que o crescimento paulistano resultava da
vitalidade do momento. Vitalidade de uma cidade que se urbanizava em
números pouco conhecidos dos tradicionais tratados urbanos e que o
estudo entendia, restritamente, como um grande “acampamento”
descontrolado. A cidade passava de 200 mil habitantes no início do século XX para
dois milhões nos anos 1950. Acompanhar esse crescimento populacional,
que se avolumava em função das possibilidades oferecidas pela cidade e
região metropolitana, demandava uma capacidade operacional para a qual
o país não estava preparado. Não existiam receitas a serem seguidas
diante da nova realidade urbana que se impunha. As lições aprendidas
da disciplina urbanística tradicional não eram apenas idéias fora de
lugar, mas também não conseguiam responder a esses desafios. Durante
décadas, planos e projetos continuaram a ser elaborados com foco em um
ideário trazido de fora.
Nos anos 1970, mesmo sob o domínio da ideologia imposta pelo BNH,
alguns arquitetos precursores, entre eles Carlos Nelson Ferreira dos
Santos, com uma visão pioneira para a época, deram os primeiros passos
para romper com o discurso oficial que pregava a eliminação da
informalidade e a construção de conjuntos habitacionais massivos e
distantes. Em consonância com a realidade do país, entenderam que a
população urbana crescia em escalas não conhecidas e os bairros
informais se transformavam em opção para aqueles que, ou não tinham
acesso ao crédito para a aquisição da casa própria, ou preferiam
morar precariamente em regiões centrais mais acessíveis ao trabalho e
equipamentos públicos. Passaram então a desenvolver projetos
respeitando os esforços que tinham sido realizados na construção
informal das moradias, nos bairros conhecidos como favelas. Para Carlos Nelson, a cidade deveria ser pensada a partir da práxis
transformadora, com elementos de inovação, polêmica e criatividade, o
que só era possível a partir de um profundo conhecimento da
realidade, não apenas do território, mas, sobretudo, da população
que nele vivia. Era o início do reconhecimento das pré-existências
urbanas ou o urbanismo das idéias no lugar. Tais urbanistas visionários abriram espaço para uma forma de pensar
a cidade que reconhecia uma série de questões específicas da
realidade brasileira. Até então, éramos um país de pouca cultura
urbanística, implantávamos idéias fora de lugar e não reconhecíamos a
nossa realidade urbana. As experiências desenvolvidas à época,
tinham como ponto de partida o reconhecimento da cidade informal com
seus códigos próprios, embora os mesmos não representassem o modelo
idealizado pela disciplina urbanística tradicional. Daí surgiram, nos anos 1990, o Programa Favela-Bairro (1993), no Rio
de Janeiro,e o Programa Guarapiranga (1993), em São Paulo.
Intervenções de grande alcance, que adotavam a nova forma de pensar as
cidades brasileiras, principalmente no que tange à assim chamada
cidade informal, um pensamento urbanístico próprio, assentado em
raízes locais, que parte do conhecimento da cidade real, existente. Um
projeto que reconhece as pré-existências territoriais como resultado
dos esforços coletivos realizados pelas famílias que constroem suas
casas, e que também são atores da construção da cidade. Projetos que
tem a dimensão da existência daqueles que moram nos diferentes
lugares, que reconhecem a pluralidade urbana e a existência de uma
estrutura morfológica que tem signos próprios. A consolidação desse conjunto de idéias formadas a partir de
experiências que resultaram em práticas de sucesso, impulsionou o
trabalho da Secretaria de Habitação da cidade de São Paulo, a partir
de 2005. O caminho adotado foi consolidar a política habitacional,
dando início à elaboração do Plano Municipal de Habitação, à
construção do Sistema de Informações para a Habitação
(www.habisp.inf.br) e ao Sistema de Priorização de Intervenções, ao
mesmo tempo em que era dado início à implantação do Programa de
Urbanização de Favelas. Programa de dimensões e abrangência até então desconhecidas,
passou a despertar o interesse de estudiosos da questão habitacional. O
foco central da urbanização é a implantação de redes de
infraestrutura básica, sistemas de conectividade com a cidade
urbanizada, implantação de áreas de lazer e equipamentos públicos de
grande porte, além da construção de unidades habitacionais para os
que estavam vivendo em áreas de risco. A urbanização de favelas trata de implantar um conjunto de
benfeitorias que a cidade já tem e, mais importante, integrar o que
antes era informal à cidade legal. O projeto da cidade de São Paulo
não se move por conceitos trazidos de fora, ou seja, de implantar
grandes equipamentos sofisticados que não resolvem problemas imediatos
da comunidade e cujo projeto não estabelece uma linha direta com os
territórios existentes. Desse interesse internacional em conhecer a experiência paulistana
no trato dos problemas urbanos relacionados à informalidade, surgiu a
primeira parceria - o estúdio com os estudantes do Sustainable Urban
Living Model da Columbia University Graduate School of Architecture
Planning and Preservation. Coordenado pelos professores da U-TT, o
estúdio tinha como propósito a elaboração de propostas para
Paraisópolis. A área escolhida como objeto de reflexão e elaboração de
propostas – Paraísopolis - era a que melhor representava a diversidade
urbana paulistana e se constituía em desafio de grande dimensão para
os estudante e professores da U-TT. Seus quase 60.000 habitantes
compõem-se, majoritariamente, de famílias de baixa renda e os índices
de vulnerabilidade social na área são elevados. É uma cidade pobre
inserida de forma anacrônica no meio de uma cidade rica. Para um
observador externo, os contrastes entre as duas cidades podem parecer
grandes, visíveis e extremos, portanto, insuperáveis. No entanto, a equipe da Sehab mostrou ao grupo que uma cidade era
dependente da outra. Uma oferece mão de obra e, a outra, empregos,
serviços e consumo. Uma necessita de serviços básicos de educação e
saúde, a outra facilita o acesso a esses serviços. Essa profícua
relação de trocas constantes resultou no fato de Paraisópolis ser
indicada como exemplo das possibilidades do convívio democrático entre
as diferenças da cidade. Assim, como em muitos outros bairros de baixa renda – favelas ou
loteamentos -, a região se consolidou, as famílias criaram redes de
solidariedade e são visíveis no dia a dia os investimentos nas
unidades habitacionais, na implantação de novos comércios e oferta de
serviços. Essas atividades resultam em uma vida urbana fervilhante,
constatada nas ruas de Paraisópolis. Diante dessa realidade consolidada, a maior parte das famílias quer
ficar na área, manter suas moradias e garantir o título de
propriedade. Introduzimos ao grupo de estudantes essa nova situação, a
ser observada nas propostas para a urbanização do bairro. Explicamos
que o essencial nos projetos refere- se ao respeito às
pré-existências e ao desenvolvimento do capital social da comunidade,
suas redes de relações e seus sonhos. A intervenção, além de universalizar o acesso à infraestrutura,
aos serviços básicos, a eliminação de situações de risco, deve
explorar a criação de identidades, de modo a fortalecer a noção de
pertencimento da comunidade. Na sequência, outros estúdios se sucederam e outras formas de
compartilhamento veem sendo experimentadas. A Sehab desenvolveu
trabalhos com a Universidade da California (UCLA), com o Instituto
Berlage e com a Escola Politécnica de Zurique (ETH). Todos esses estúdios e seus resultados, alguns já publicados, são
considerados momentos de compartilhamento de idéias importantes para a
equipe técnica da Sehab. Não se trata mais de trazer idéias de fora do
lugar, mas sim, compartilhar experiências de sucesso que podem ser
utilizadas em outras regiões, cidades e países. Temos em São Paulo mais de 1.500 favelas e um imenso desafio de
transformá- las em bairros integrados ao conjunto da cidade. Essa é
uma realidade comum em metrópoles localizadas em todos os continentes.
Criar uma rede de experiências bem sucedidas, resultado de projetos
criativos e sérios de arquitetos e urbanistas, é um caminho para a
universalização das boas práticas. Experiências bem sucedidas para a transformação dos novos bairros
têm em comum um foco central: a construção de um projeto de futuro
vinculado não só a construção de novas moradias, mas também a
superação de déficits relacionados à infraestrutura, a
acessibilidade, a equipamentos e serviços. A cidade do século XXI passa por mudanças rápidas o que resulta na
constante substituição de territórios existentes, ou então, na
transformação de territórios precários, que cresceram de forma
informal sem atentar para os regulamentos do uso e ocupação do solo. A missão da Secretaria de Habitação, ao implantar sua política
habitacional na cidade de São Paulo, está voltada para a atuação nos
territórios precários, o que veem fazendo com a implantação de
vários programas voltados para um conjunto diferenciado de questões a
serem enfrentadas. Para isso tem procurado fortalecer a equipe técnica
para que a mesma conduza os diversos programas e projetos em execução. Acreditamos que os projetos que estão sendo implantados representam
uma nova fase da produção da arquitetura e do urbanismo locais, onde
está expressa a capacidade dos profissionais de responder aos desafios
da cidade das pré-existências. São projetos que mostram a
originalidade e a criatividade dos arquitetos que buscam a mudança dos
espaços existentes, com resultados reconhecidos em todos, população
beneficiada, instituições de ensino, bienais de arquitetura, entre
outros. Assim surgiu a idéia do SP Calling ou Jornada da Habitação. Sob a
curadoria do arquiteto Stefano Boeri, o objetivo principal do projeto,
é destacar a importância das intervenções em assentamentos
informais, não como uma excepcionalidade, mas como uma nova relação
que os políticos e técnicos devem estabelecer com a população
residente nos bairros menos privilegiados, implantando soluções
criativas, em conformidade com as demandas da cidade do século XXI. Para ampliar a discussão sobre o tema, a curadoria convidou seis
cidades para participarem do SP Calling – Roma, Mumbai, Nairóbi,
Medellín, Moscou e Bagdah -, cada uma delas explorando a partir de
experiências locais, o elo entre essas cidades e a experiência
paulistana. As idéias aqui apresentadas tem como objetivo comum a
transformação da cidade contemporânea em um espaço onde valores
opostos coexistam e sejam confrontados, em oposição às idéias
conservadoras das comunidades isoladas. A cidade que possibilita a
convivência democrática, o que está relacionado a extensão do acesso
a oportunidades a todos seus habitantes.
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